Pra vocês terem uma ideia, a epopeia de Gilgamesh, do século 7 a.C., uma das primeiras obras da literatura mundial, já apresenta descrições sexuais, principalmente homossexuais. Há poemas eróticos escritos na Idade Média, mesmo com a repressão católica, os padres goliardos já falavam de sexo. E as cantigas de amor e de amigo, dos trovadores?!
Podemos citar vários clássicos da literatura mundial, desde Sade, Masoch e John Cleland (Fanny Hill- Memórias de uma mulher de prazer, 1748), até o norte-americano Henry Miller (Trópico de câncer, 1934) e a francesa Anne Descos (História de O, 1954), sob o pseudônimo Pauline Réage.
No Brasil, representantes masculinos do erotismo são: os baianos Gregório de Matos, o Boca de Inferno, Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro (A casa dos budas ditosos), Dalton Trevisan (Contos eróticos), além de obras de Carlos Drummond de Andrade e Machado de Assis. Já entre as escritoras são: Olga Savary, Hilda Hist e Adélia Prado, Clarice Lispector, Cassandra Rios.
Vamos ficar com esses nomes.
Aqui estou me propondo a falar especificamente do erotismo em Florbela Espanca. Para quem não conhece, Florbela é uma poetiza portuguesa, morreu aos 36 anos. Em vida, publicou apenas dois livros: o “Livro de mágoas” e “O livro de Sóror Saudade”, que tiveram cada um a pequena tiragem de duzentos exemplares. Todo o restante da sua foi publicada postumamente. São contos, cartas e um diário íntimo, “O diário do último ano”. “Charneca em flor” foi o primeiro a ser publicado após o suposto suicídio da poetisa (em janeiro de 1931).
Florbela escreveu sobre o amor, a morte, a dúvida, a saudade, a dor, os sonhos, as sensações, as frustrações, os desenganos. Florbela me conquistou quando eu li os seus poemas eróticos. A poetiza produziu uma poesia sinestésica, em que todos os sentidos, o tato, a visão, o olfato, são recursos usados.
Nos cinco sonetos abaixo podemos ver, entre outras interpretações:
- Sensualidade e erotismo por meio da sensacionismo;
- O feminino na poesia de Florbela recusa a condição de objeto e afirma sua condição de protagonista ativo;
- O erotismo é uma forma de expressão do (feminismo);
- As imagens eróticas estão ligadas diretamente ao desejo do “Eu” em encontrar, em possuir o “Outro”;
- O erotismo em Florbela é o querer ter.
Volúpia
No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!
A sombra entre a mentira e a verdade…
A nuvem que arrastou o vento norte…
– Meu corpo! Trago nele um vinho forte
Meus beijos de volúpia e de maldade!
Trago dálias vermelhas no regaço…
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!
E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças…
Frémito do meu corpo…
Frêmito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doido anseio dos meus braços a abraçar-te,
Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!
E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que não me amas…
E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas…
Esfinge
Sou filha da charneca erma e selvagem.
Os giestais, por entre os rosmaninhos,
Abrindo os olhos d’oiro, p’los caminhos,
E ansiosa desejo – ó vã miragem
Que tu e eu, em beijos e carinhos,
u a Charneca e tu o Sol, sozinhos,
Fôssemos um pedaço de paisagem!
E à noite, à hora doce da ansiedade
Ouviria da boca do luar
O De Profundis triste da saudade…
E, à tua espera, enquanto o mundo dorme,
Ficaria, olhos quietos, a cismar…
Esfinge olhando a planície enorme…
Realidade
Em ti o meu olhar fez-se alvorada
E a minha voz fez-se gorjeio de ninho…
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho…
Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo da Espanha, em taça cinzelada…
E a minha cabeleira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho…
Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que nasci…
Tens sido vida fora o meu desejo
E agora, que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei… se te perdi…
Toledo
Diluído numa taça de oiro a arder
Toledo é um rubi. E hoje é só nosso!
O sol a rir… viv’alma… não esboço
Um gesto que me não sinta esvaecer
As tuas mãos tateiam-me a tremer…
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço
É como um jasmineiro em alvoroço
Ébrio de sol, de aroma, de prazer!
Cerro um pouco o olhar onde subsiste
Um romântico apelo e mudo
– um grande amor é sempre grave e triste.
Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo
Uma torre ergue ao céu um grito agudo…
Tua boca desfolha-me num beijo…
Eu poderia falar de cada poema, mas o post ficaria enorme. Só vou pontuar um aspecto. O vinho é um elemento que aparece constantemente na poética de Florbela. O vinho é tido como uma bebida afrodisíaca, quando bebemos, geralmente, liberamos nossos instintos. Ele esquenta os corpos e os corações e é, por isso, com freqüência, associado à sedução, à volúpia, ao desejo. Espero que o leitor curta leitura tanto quanto desses 5 poemas.