Hoje trago a indicação de um livro que encontrei por acaso e que me surpreendeu profundamente: Restos de Nós, escrito por Bia Onofre, uma autora brasileira que expressa, em seu primeiro romance, as diversas formas de escravidão às quais somos submetidos.
A principal ênfase da obra recai sobre as correntes — ou, melhor dizendo, os “nós” — que foram atados à vida das mulheres e que continuam a interferir em nosso destino. A narrativa se passa em Bananal (SP) e Gávea (RJ) e tem como personagens principais Maria Clara e Mariana, duas mulheres que, apesar de viverem em épocas distintas, compartilham muitas semelhanças.
Conhecemos as personagens por meio de seus diários, uma abordagem fantástica que nos faz mergulhar na história como se estivéssemos lá.
O diário de Maria Clara foi encontrado anos depois de sua morte, no casarão onde viveu. Victoria, uma integrante de uma equipe de restauração de monumentos antigos, encontrou o caderno e, com ele, a oportunidade de conhecer a versão da história tantas vezes contada pela avó, agora nas palavras da própria Maria Clara: uma mulher do século XIX, marcada desde o nascimento pela morte de sua mãe.
“Pobre de mim. Meu choro primordial foi, por certo, de desespero ao sentir que nascera marcada pela morte.”
Restos de nós: sociedade totalitária que submete as mulheres a papéis rígidos
Do pai, Maria Clara recebeu desprezo e ódio. Foi da pele negra, que tanto sofreu com a escravidão na fazenda do pai, que ela encontrou afeto e conseguiu sobreviver até que estivesse pronta para se casar. O casamento, sem amor, foi apenas mais um nó em sua vida, que segue um ciclo de dor e amor.
Por outro lado, o diário de Mariana, mais contemporâneo, foi digitado em um notebook e descoberto pelo marido. Nela conhecemos uma nutricionista que, apesar de parecer realizada, enfrenta uma crise pessoal: corpo e alma em constante conflito. O casamento vai mal, e muitos nós se acumulam em sua vida.
“Não posso isso, só posso aquilo; hoje os deveres, amanhã as imposições. Inferno à paisana. Possuída pelo demônio, ando exausta por ter que distorcer, retorcer e converter desejos tidos como obscuros. Meu anjo mau sufoca meu bom diabo. Mas só o último talvez me trouxesse a verdadeira paz.”
Restos de nós: solidão e a luta interna da mulher
Com os registros de ambas as personagens, começamos a entender a que “nós” Bia se refere. É notável como as mulheres carregam cultural, social e psicologicamente uma culpa imensa — seria isso uma herança do fruto proibido? Através dos diários, percebemos que não é por castigo divino que mulheres como Maria Clara e Mariana sofrem. Às vezes, não vejo diferença entre os lamentos de personagens separadas por mais de cento e cinquenta anos.
Apesar das conquistas das mulheres ao longo do tempo, o que vemos é muito externo; as mudanças são visíveis, mas não necessariamente sentidas. E os nós que carregamos internamente? Alguém os vê?
“Meu desejo se manifesta forte e embaralha os pensamentos. Não me reconheço. O fogo queima o bom senso. Levada ao Tribunal da Santa Inquisição, arderia na fogueira ao lado de Bovary. Vão-se os livros e as bruxas, ficam os castigos.” — Maria Clara
Acho que não preciso dizer o quanto gostei da leitura, certo? Não é à toa que Restos de nós foi premiado pela Biblioteca Nacional! É uma obra forte, reflexiva, muito bem escrita e instigante. A edição está simples, mas caprichada, e não encontrei erros de digitação. A divisão da narrativa, intercalando os diários de Maria Clara e Mariana, é uma delícia de ler.
Entre as duas personagens, confesso que gostei mais de Maria Clara, que, mesmo em meio ao sofrimento, ainda sonha em ser feliz e amar. Mariana, por outro lado, me pareceu, às vezes, dramática e até antipática, impondo ao mundo o peso de suas frustrações. Vale ressaltar que Restos de nós menciona obras literárias como Madame Bovary e As Mil e Uma Noites, além de fazer referências à mitologia grega, o que pode ser um atrativo a mais para quem aprecia o tema.
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1 comente
Mayara, como vc está? Hoje, por acaso, reli sua resenha. Ficou tão linda, né? Compartilhei no meu FB. Vc está bem? Beijocas!!!