O poema Cântico Negro, José Régio, pertence à Presença, em que predomina a preocupação com o psicologismo: as questões íntimas do eu e também com o rompimento do passado. Para caracterizá-lo dessa forma, justificamos com alguns elementos do próprio poema. Você pode discordar, é claro.
Podemos perceber as questões íntimas do eu e o rompimento do passado, quando o eu individual rebela-se contra dependência e o comprometimentos vividos na época, perante o convite para seguir as normas literárias e ideológicas (“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos [doces/Estendendo-me os braços, e
seguros/De que seria bom que eu os ouvisse).
O posicionamento do eu conduz à afirmação de sua individualidade e sua insubordinação, ao recusar o convite para seguir a coletividade (Eu olho-os com olhos lassos,/ (Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)/E cruzo os braços,/E
nunca vou por ali...).
Também vemos que o eu lírico confirma as posições defendidas pelos presencistas ao colocar que “Se vim ao mundo, foi/Só para desflorar florestas virgens,/E desenhar meus próprios pés na areia [inexplorada!“.
Para os presencistas, “a verdadeira arte é aquela que resulta da expressão vital do artista, transfigurada por este em expressão artística, revelando, deste modo, os sentimentos mais profundos e sinceros do criador, e transformando-os em sentimentos universais, compreendidos por todos os homens”. (CACHADA, 2000, p.6).
Desflorar florestas virgens pode ser interpretado como os sentimentos mais profundos e sinceros, ou seja, algo individual e autoral, que cada autor deve imprimir à sua obra. O eu lírico rebelado não aceita o passado. “Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,/E vós amais o que é fácil!/Ninguém me diga: “vem por aqui”!/A minha vida é um vendaval que se soltou“.
Ainda vemos que, além de um eu íntimo rebelado contra os comportamentos sociais e acadêmico e a favor da manifestação do autêntico, verdadeiro e original, há também um eu íntimo com dúvidas, que não sabe para onde, nem por onde vai (Não sei por onde vou,/Não sei para onde vou/- Sei que não vou por aí!). São cargas dramáticas devidos aos conflitos interiores (Eu tenho a minha Loucura !/Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura).
O poema Cântico Negro
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!